Napoleão em sua retirada de Moscou.
Dezembro de 1812
Pés trôpegos cambaleiam sobre a neve fofa, acompanhados pelo desesperado resfôlego de milhares de pulmões exasperados, movidos somente pela adrenalina da luta por sobreviver. O exército de mais de meio milhão de soldados, que antes fora denominado como a Grande Armada (Grande Armée) napoleônica, segue uma longa caminhada na vã tentativa de fugir das doenças, fome e da certeza iminente da morte por hipotermia. Este foi o resultado da tática de enfrentamento russa contra o ataque destruidor das tropas francesas, a qual ficou conhecida como “Terra Arrasada”.
Mas que motivos teriam levado tais potências do século XIX a se enfrentarem desta maneira?
O BLOQUEIO CONTINENTAL (1806)
No ano de 1806, após a inquestionável derrota francesa na Batalha marítima de Trafalgar, Napoleão decidiu estabelecer o que ficou conhecido como o Bloqueio Continental à Inglaterra, com objetivo de neutralizar o poderio econômico deste rival ao privá-lo de manter relações comerciais com o mercado europeu, ao promover a ameaça de invasão à qualquer país que tivesse a ousadia de ignorar suas ordens. Esta tática se tornou efetiva após a derrota dos exércitos da quarta e quinta Coligações – entre os anos de 1807 e 1809 – de forma a determinar o poder invencível da ágil mobilidade dos exércitos franceses em terra e culminou na adesão russa, por meio do Tratado de Tilsit.
GRAVURA DO ARTISTA HENRY L’EVÊQUE QUE RETRATA O EMBARQUE DO PRÍNCIPE REGENTE DE PORTUGAL, DOM JOÃO, E TODA FAMÍLIA REAL PARA O BRASIL NO CAIS DE BELÉM – BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL
Entretanto, a incapacidade francesa em suprir as necessidades deste mercado de proporções continentais resultou em uma profunda crise econômica por todos os países participantes do bloqueio. Tal fato levou Portugal, em 1808, a desobedecer às ordens do então Imperador Napoleão e sofrer a tão temida invasão de seu território, enquanto a família real portuguesa seguia a caminho da colônia brasileira, acompanhada por uma escolta de navios ingleses.
CARICATURA ATRIBUÍDA AO INGLÊS JAMES GILLRAY, QUE SATIRIZA O APETITE DOS DOIS PAÍSES POR DOMÍNIOS.
A partir de então, Napoleão passou a ter de lidar com diversos grupos insurretos que encontraram na estratégia de guerrilha, uma forma eficiente de se colocarem contra as imposições do império francês – muitas vezes com apoio militar e econômico dos britânicos. Isto porque, nenhum dos dois grandes impérios se daria por feliz com menos que uma vitória total sobre seu adversário.
Com isso, passa a ter um sentido bem claro o fato de Alexandre I, da Rússia, ter decidido romper com o Tratado de Tilsit no ano de 1812, assim como a prepotente reação de Napoleão que, ao decidir impor rápida rendição ao império russo, almejava uma forma de legitimar sua autoridade sobre o território europeu como um líder que agia de forma benevolente com seus adversários. Contudo, Napoleão tinha uma crença tão forte em uma rápida vitória, que pareceu não levar em consideração a possibilidade de um conflito de longa duração em território inimigo; algo que foi decisivo em sua derrota.
AS INVASÕES NAPOLEÔNICAS
Em julho de 1812, Napoleão pôs em marcha um exército com aproximadamente 600.000 homens, 50.000 cavalos e carroças carregadas com suprimentos previsto para trinta dias, tomado pela certeza de obter a rendição adversária em apenas vinte dias. Entretanto, para seguir com a tática responsável por suas vitórias pela Europa central – baseada na rápida movimentação de seus exércitos por todo o front – era necessário um terreno estável e com boa rede de estradas, além de boas áreas cultivadas para obter alimentos de maneira prática, já que as carroças de suprimentos não eram capazes de acompanhar a velocidade de movimentação da infantaria.
Todavia, a estratégia de Napoleão, além de não considerar as péssimas condições das estreitas estradas russas e a pobre agricultura nos campos que cercavam o espaço, subestimou a capacidade de observação do veterano russo, General Kutuzov (1745-1813). Com 68 anos, este militar serviu na batalha da Criméia e foi fundamental na obtenção da vitória cossaca na Guerra Russo-Turca, na Moldávia – de onde guardava a amarga lembrança de um olho inutilizado em batalha – além de ter sido capaz de promover retirada de seu exército intacto em meio a conhecida Batalha de Ulm (1905), em Dürrenstein.
Consciente da superioridade numérica e militar de seus inimigos, Kutuzov decidiu aplicar um complexo sistema de batalhas, acompanhadas de retiradas estratégicas. Denominado “Terra Arrasada” este sistema consistiu em incendiar os campos e contaminar as fontes de água durante o processo de retração do front de batalha, atraindo seus adversários em direção ao interior do país. Três meses depois, Napoleão encontrou Moscou incendiada, após inconclusiva a inconclusiva batalha de Borodino, com cerca de 200.000 homens mortos ou hospitalizados, devido doenças e exaustão. O rigoroso inverno chegou e levou Napoleão a bater em desesperada retirada, com os russos ao seu encalço e relatos de soldados revelavam os horrores sofridos por esta fatigada multidão, acossada pelo frio, fome, tifo, infestações de piolhos e diarreia em acampamentos precários que favoreciam a contaminação pelas fezes destes milhões de homens.
CARICATURA DE 1814 QUE SATIRIZA E CELEBRA A DERROTA DE NAPOLEÃO PARA A 6ª COALIZÃO, NA QUAL ESTE IMPERADOR FOI ENVIADO PARA A ILHA DE ELBA. POUCO TEMPO DEPOIS, ELE FOI CAPAZ DE FUGIR DA ILHA E REALIZAR SUA ÚLTIMA TENTATIVA DE RETOMAR O PODER.
A TEORIA DA ALTERAÇÃO DA ESTRUTURA DO MICROCRISTALINO NO CHUMBO
Neste ponto, nos deparamos com a inusitada hipótese desenvolvida pelos autores do livro “Os Botões de Napoleão” (2003) que, na introdução de seu trabalho, apontam uma teoria que sugere que o fato dos botões dos uniformes dos destacamentos napoleônicos serem feitos em estanho poderia ter contribuído para o enorme número de mortos neste processo de retirada. Isto porque o estanho, a partir dos -30ºC, sofre um processo de transição alotrópica – ou seja, passa por mudanças no ordenamento de sua microestrutura cristalina – de forma a se transformar em pó, como é possível vermos no timelapse gravado pela equipe da periodictabe.ru.
Ademais a curiosidade desta possibilidade, os próprios autores questionam esta possibilidade pois este processo resulta razoavelmente lento, inclusive nas extremas temperaturas atingidas em meio ao inverno russo. Tanto que o processo apresentado no vídeo levou cerca de vinte horas a uma temperatura controlada de -40ºC. Teoria que é uma vez mais enfraquecida pelo artigo de uma equipe de químicos da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, os quais apontam que o achado arqueológico de uma cova coletiva de soldados membros do exército francêsna Lituânia, durante o ano de 2002, permitiu aos pesquisadores comprovarem que, na verdade, os botões do uniforme francês eram compostos por uma liga de estanho e cobre.
BOTÃO PRESENTE EM UMA RECONSTRUÇÃO DA TÚNICA UTILIZADA PELO 53º REGIMENTO DE INFANTARIA DA GUARDA IMPERIAL DE NAPOLEÃO.
CONCLUSÃO
Apesar de interessantíssima, a hipótese do “esfarelar” dos botões presentes nas fardas do exército napoleônico, permanece um mito e a derrota que marcou o início do declínio do império napoleônico se mantém atribuída à péssima logística e à fraca disciplina instituídas no exército francês que, ao se transformar em uma turba acéfala durante a retirada, ficou ainda mais suscetível às doenças e intempéries da região.
Certamente o frio congelante e a exaustiva marcha em meio a neve fofa marcaram a derrocada de centenas de milhares de homens e no retorno de cerca de 1/6 de todo o contingente, fato que ofereceu enorme impacto sobre as fileiras de combatentes. Contudo, a final derrocada de Napoleão somente veio na famigerada Batalha de Waterloo, onde o imperador seria derrotado pela 7ª Coligação e forçado a viver em exílio na ilha de Santa Helena, onde faleceu em condições controversas.
CASA ONDE NAPOLEÃO PASSOU SEUS ÚLTIMOS DIAS, NA ILHA DE SANTA HELENA.
Fonte: Paleonerd
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