Os samurais foram membros de uma classe guerreira que contava com enorme prestígio na sociedade japonesa medieval e guardava para si a honra de servir e proteger a figura do Shogun – nobres que governavam as províncias em nome do imperador. O período entre os séculos XV e XVI ficou marcado por uma guerra civil generalizada, em meio à qual as famílias de nobres lutavam pelo controle de regiões do país. Diante disso, as famílias de samurais e daimyôs (proprietários de terras) ascenderam como novos atores políticos, na disputa por poder, onde se mantiveram até o século XIX, quando uma série de reformas políticas, econômicas e culturais deram início à Era Meiji, marcada por um intenso processo de industrialização sob os moldes ocidentais.
Contudo, a figura dos samurais foi mantida associada à ideia de honra e seus equipamentos e armas eram símbolos de status e poder, sendo transmitidos por gerações associados à memória nostálgica de antepassados guerreiros. Isto porque, na cultura japonesa foi mantida a tradição, segundo a qual o espírito dos ancestrais (Kami) sobrevive no mundo terreno conectado à suas posses e seus descendentes têm o dever de honrar sua memória. Esta prática esteve presente, inclusive, entre combatentes da Segunda Guerra Mundial que levavam consigo espadas centenárias como um meio de estarem acompanhados pela alma do samurai ancestral de suas famílias.
Um dos samurais mais famosos na cultura japonesa é Myamoto Musashi, cuja história terminou por se tornar uma lenda. Ainda mais depois que o novelista histórico Eiji Yoshikawa publicou entre 1933 e 1938 uma série de capítulos num periódico japonês inspirados nessa figura que narram sua trajetória desde a batalha de Sekigahara, passando pelos anos de aprendizado com o monge Takuan e seus diversos encontros com outros mestres guerreiros em duelos. Estas publicações foram compiladas em livros e tiveram enorme influência sobre a construção da imagem do guerreiro medieval japonês entre nós, sendo reverenciada em quadrinhos, filmes e animações.
Em 1645 Musashi publicou “O Livro dos Cinco Anéis”, onde apresenta um tratado filosófico sobre a técnica de luta com duas espadas (Nitô-ryu) e compara a arte da espada com resignada dedicação do carpinteiro que, em seu trabalho, realiza a busca constante pelo aperfeiçoamento da técnica. Nesta obra, este mestre samurai distingue cinco posições defensivas fundamentais, utilizadas nas batalhas (alta, média, baixa, pela esquerda e pela direita) comparando a movimentação do guerreiro à fluidez da água, que se adapta e conforma de maneira eficiente a qualquer meio. Além disso, inspirado nos princípios do Zen, chega a afirmar que esta técnica supera os campos de batalha e pode ter enorme serventia até mesmo para governar uma nação.
Além de ser referência clara em mangás, filmes, animes e jogos, a vida e obra de Musashi são muito estudados por acadêmicos e, atualmente, empresários e administradores têm resgatado o trabalho deste guerreiro-filósofo, em busca de interpretar e adaptar os preceitos do caminho do guerreiro para o mundo dos negócios e auto-ajuda.
KATANA: UMA ESPADA DE QUALIDADE SUPERIOR
Na introdução do livro “Katana: The Samurai Sword” (2010) o especialista em história religiosa e militar do japão, Stephen Turnbull, apresenta a katana como uma arma e símbolo muito cultuado até hoje na cultura japonesa, cuja imagem está associada à honra e status social. Referida nas palavras do shogun Tokugawa Ieyasu (1542-1616) como “a alma do guerreiro”, cada espada carrega em si um processo de criação único, o qual é dotado de todo um sentido religioso. Por isso, não surpreende que, para o responsável pelo Museu da Espada que fica no Templo Atsuta (Nagoya), Fukui Yoshihiro, a arte de forjar espadas resulta uma religião separada, dotada de elementos e rituais próprios.
Exemplar usado por soldado japonês durante a Segunda Guerra Mundial
A katana é realmente uma arma especial, pois é uma das únicas lâminas que podia ser utilizada pelo guerreiro como espada e escudo ao mesmo tempo, desferindo cortes precisos ou aparando ataques poderosos sem sofrer grandes danos. Contudo, de forma diferente do que costumamos imaginar, a espada não era a primeira opção de um samurai em batalha, já que este deveria provar sua destreza no caminho do arco e cavalo (“kyuba no michi”), só desembainhando sua espada quando suas flechas acabavam. Ainda assim, o samurai jamais poderia se distanciar de sua katana, da qual dependia sua honra.
O processo de confecção de uma katana é algo extremamente complexo e a forja (tatara) é proclamada um espaço sagrado no qual o humilde artesão deve dedicar todos seus esforços para produzir uma espada de qualidade. Para você ter uma ideia, a língua japonesa prevê uma diferenciação entre o ofício de um simples ferreiro (Kajiya), daquele que tem a sagrada tarefa de honrar os deuses e construir espadas – tosho. Com roupas brancas, que lembram um sacerdote, este mestre artesão e seus ajudantes iniciam seu trabalho alimentando a forja (que é mantida entre 1300ºC e 1500ºC) por três dias e três noites com carvão vegetal e areia ferrosa, num processo de criação da liga de aço.
O resultado deste processo são fragmentos, chamados tamahagane, que são cuidadosamente selecionados pelo mestre para a confecção da espada. O mestre artesão tem a responsabilidade de garantir o equilíbrio perfeito de partículas de carbono mezcladas ao ferro (entre 0.3 e 1,5%), sem contar com a ajuda de equipamentos modernos de verificação. Estes fragmentos são compactados com martelos de 10Kg até atingirem a espessura de uma bolacha, num procedimento que serve também para retirar parte das impurezas do metal.
Então, fragmentos considerados de qualidade superior são amontoados na altura de um lingote e envoltos por uma lâmina de papel umedecida em água, que depois recebe uma cobertura de argila líquida e volta para o fogo a cerca de 700ºC. Este é um ponto muito importante neste processo, já que o metal deve ser compactado sem ser completamente derretido, de forma a manter certo grau de heterogeneidade entre os materiais. Como veremos, a seguir, este procedimento é fundamental para a elaboração da espada, pois irá garantir a resistência e flexibilidade do produto final.
Para entender isso, precisamos ter em mente que nesta temperatura, a liga de aço com até 2,1% de carbono forma uma solução sólida não magnética de estrutura cúbica cristalina, denominada austenita. Quando esfriado devagar, este material se transforma numa liga de aço mais maleável, chamada “Pearlita” (livre tradução do termo em inglês “Pearlite”, que fiz), a qual é utilizada para fazer o núcleo interno elástico da espada. Contudo, quando esfriada rápido, a austenita prontamente muda para uma estrutura cristalina aberta que prende as moléculas de carbono, produzindo uma forma mais rígida de aço chamada “martensite” – no que foi dado em homenagem ao metalúrgico alemão Adolf Martens (1850-1914), que a reconheceu no século XIX.
Agora que sabemos que a técnica de submergir em água a espada (têmpera) serve para endurecer o metal e foi o elemento chave no desenvolvimento histórico do aço temperado, faz mais sentido eu te dizer que a Katana é feita por dois tipos distintos de aço (Pearlita e martensita) que, combinados, conferem à esta arma a capacidade de absorver grandes impactos, sem ter sua lâmina comprometida. No caso da Katana, a martensita é utilizada para revestir um núcleo de Pearlita, como um bainha! CIÊNCIA, MANO!!
Mas, antes de chegar nisso, o mestre artesão vai fundindo o metal quente às marteladas e procurando controlar a quantidade de carbono infundido no metal, passando o lingote em cinzas de palha de arroz (que é rica em carbono). São horas e horas de marteladas, dobrando o metal quando ele fica mais fino, num processo chamado Urikaishi. Isso confere à lâmina uma composição microscópica muito peculiar e resistente. Depois, os dois metais são reunidos num procedimento chamado Kumi-Awase, onde a shigane (barra de Pearlita) é revestida pela Kawagane (liga de Mantenita).
A partir deste ponto, o mestre decide a melhor maneira de moldar sua lâmina e segue o processo sozinho, dando a forma ao aço. Ele limpa a lâmina e seca-a com muito cuidado e, então, pode se dedicar a dar sua assinatura à espada (Hamon), que implica passar uma camada de massa de argila (cuja receita é um segredo), antes de levar a espada à forja novamente. É aí que a espada ganha aquele bonito e característico padrão que marca sua lâmina. Existem padrões de hamon associados a diferentes gerações de mestres, com variações específicas.
Só depois de tudo isso, o mestre vai se dedicar a conferir a curvatura de sua katana e, além disso, deve construir uma lâmina bem equilibrada, cuja ponta deve corresponder a aproximadamente 70% da espessura de sua base. Tudo no olho!
O mestre deve estar sempre atento às mudanças na coloração do metal aquecido, que aos seus olhos bem treinados,revela informações sobre a temperatura ideal do metal a ser mantida, antes de poder submergir a lâmina na água, para “temperá-la”. Ainda assim, são mais vários dias para amolar e dar polimento à arma que, uma vez terminada, recebe as inscrições do proprietário da espada.
Desde o primeiro passo uma katana pode levar até um ano para ficar pronta e, por isso, é o símbolo de dedicação e trabalho. Até hoje existem diversas escolas de kendô (o caminho da espada) e de Kenjutsu (técnica da espada) com seus estilos (Ryu) específicos. E o caminho do samurai (Bushidô), de busca incessante pelo aperfeiçoamento humano, tem sido (re)apropriado e perseguido com intensidade pelos por muitos até os dias de hoje.
Algo que fica claro com o enorme sucesso de público de películas como “O Último Samurai” (que conta a história de um samurai norte-americano que nunca existiu) ou o trabalho do rapper brasileiro Michel Dias “Rashid” Costa que, ao falar de nossas escolhas éticas do dia-a-dia, sempre busca a referência a figura filosófica do samurai. Rashid chegou, inclusive, a nomear uma música em homenagem à figura de Musashi, articulando a concepção de prontidão, aperfeiçoamento e preparo para a batalha com referências diaspóricas africanas e outras contemporâneas.
No clipe dessa música, Rashid mostra cenas de Katana Kaji Edson Suemitsui, o qual é apresentado pela folha de São Paulo como membro da “sétima geração de samurais, do lado da mãe e do pai”. Ainda segundo o periódico, Edson Suemitsu “se considera o último descendente no Brasil a manter a filosofia milenar e a tradição da forja das katanas…”
Mas isso já é assunto pra outra história.
Referências
BARAN, K. (28.out.2019) Último samurai do Brasil ainda cultiva a arte das espadas, Folha de São Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/10/ultimo-samurai-do-brasil-ainda-cultiva-a-arte-das-espadas.shtml
CARLOS, J. (04 jul. 2017) RASHID MOSTRA A FABRICAÇÃO ARTESANAL DE UMA ESPADA NO CLIPE “MUSASHI”, Nação da Música. Disponível em: https://br.nacaodamusica.com/posts/rashid-mostra-a-fabricacao-artesanal-de-uma-espada-no-clipe-musashi/
e-museum: http://www.emuseum.jp/
Forging a Katana ( Japanese Samurai Sword ): https://youtu.be/VE_4zHNcieM
Musashi, M. (2010). O livro dos cinco anéis. Clio Editora.
Royal Armouries – Japanese Warriors. Disponível em: https://royalarmouries.org/stories/our-collection/japanese-warriors-medieval-and-modern/
The Japanese Sword Museum – Tokyo: https://www.touken.or.jp/
The Secret World of the Japanese Swordsmith. (Full Documentary): https://youtu.be/iFOmjHK8Fow
Turnbull, S. (2010), Introduction, In: Katana: The Samurai Sword. Disponível em: https://books.google.es/books?hl=es&lr&id=6zW1CwAAQBAJ&oi=fnd&pg=PA3&dq=katana%20forge&ots=ECeVR5MMPJ&sig=eyXrsR7enW_df5W-cGuNKQCw5xI&redir_esc=y&authuser=1#v=onepage&q=katana%20forge&f=false
Yoshikawa, E. (1999) Musashi Vol.1, Estação Liberdade
Yoshikawa, E. (1999) Musashi Vol.2, Estação Liberdade